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Novo Livro do P. João António: A alegria de não ser (apenas) eu

«A alegria de não ser (apenas) eu» é o título do mais recente livro do Padre João António, Reitor do Santuário de Nossa Senhora dos Remédios, e está centrado na tentativa de superação da «outra» pandemia: a «ego-latria», exponenciada nesta situação que estamos a viver.
Face a alguns constrangimentos que não permitem a apresentação pública do mesmo, gostaríamos de lhe colocar algumas questões que permitam abrir o apetite para a leitura do referido título.

 

Voz de Lamego – Comecemos pelo título. Foi escolhido, certamente, para dar corpo e sintetizar as diferentes reflexões propostas. Quer clarificar esta escolha?
Antes de mais, permitam-me agradecer ao nosso querido jornal diocesano a oportunidade — que muito me sensibiliza — de apresentar este pequeno livro cujo título («A alegria de não ser [apenas] eu») foi como que «provocado» por um pensamento do grande teólogo Hans Urs von Balthasar.
Para ele, ««anunciar o Evangelho é anunciar uma grande alegria». Ora, como a alegria do Evangelho está centrada no amor «desegoízador» (o neologismo é do saudoso Agostinho da Silva) de Jesus Cristo, então a maior alegria que pode haver é abrir o «eu» aos outros e acolher os outros no «eu». O indivíduo não subsiste feliz isolado — e insulado — em si mesmo, sobre os outros ou contra os outros. Jesus afirma que a Sua missão está consumada quando entrega a Sua vida por nós (cf. Jo 19, 30).
Daí que o subtítulo do livro («Para superar “cristovitalmente” a pandemia») remeta precisamente para Jesus, o padrão maior de uma vida «des-centrada» de si e «re-centrada» no Pai e nos seres humanos. Creio que é consensual a percepção de que a pandemia destapou o que já se vinha pressentindo: a «ego-latria» (o culto exacerbado do «eu») está, profunda e deleteriamente, entranhada no espírito de muitos. Houve um momento icónico, a este respeito no início do primeiro confinamento: a corrida aos estabelecimentos comerciais, com o açambarcamento de produtos em escala desmedida. Quem pensou nos outros, nos que não tinham possibilidade de aceder até ao essencial? Mas a pandemia também mostrou o «egocentrismo» gangrena, danifica e até pode matar. Todos precisamos de todos. Nenhuma pessoa, nenhum país, nenhum sector por si só (incluindo a ciência e a política) conseguem encontrar vias de resolução. Só em conjunto, encontraremos uma saída.
É por isso que a imagem que ilustra a capa mostre o aditivo-mor do nosso tempo (o ecrã de um telemóvel), em que o «eu» gosta de se (re)ver «ad nauseam», mas mesmo aí Jesus está presente. Ele é o «espelho» onde nos vemos a nós mesmos, nas nossas limitações e nas nossas possibilidades.

VL – Que tipo de textos podemos encontrar no livro?
Os textos são pequenos e procuram condensar, em chave «cristovital», uma tentativa de diagnose da situação que atravessamos. E, ao mesmo, visam oferecer uma proposta de vida alternativa, propondo a «saída» de que tanto fala o Papa Francisco: a «saída» primeira e maior tem de ser a saída do «eu». É em comunidade que conseguiremos superar toda a sorte de adversidade. Não esqueçamos que o próprio Deus — a cuja imagem e semelhança somos criados (cf. Gén 1, 26) — é uma comunidade de amor entre o Pai, o Filho e o Espírito Santo. Pelo que a comunidade humana encontra em Deus o Seu principal referente inspirador. Não podemos desistir de fazer do mundo uma «filadélfia», um povo de amigos e de irmãos, só de amigos e irmãos!

VL – O tempo da pandemia exige novas respostas ou coloca novas questões? Ou as mesmas questões com diferentes abordagens?
Obviamente, há questões que transitam desde a aurora dos tempos e que foram sintetizadas nas célebres interrogações de Kant: «Que posso saber? Que devo fazer? Que me é permitido esperar? Que é o homem?» Estas perguntas como que ganharam nova pertinência e dramaticidade com a eclosão da pandemia. Mas também há novas questões, sobretudo aquelas atinentes a uma certa «omnipotência» da ciência e da técnica que, como verificamos, está longe de se confirmar. Parafraseando Edgar Morin, tudo o que se julgava «omnipotente» patenteou uma arrepiante «omnifragilidade». E é precisamente com a «fragilidade» do Crucificado que mais podemos aprender. Quem dá a vida é quem melhor encontra o sentido para a vida.

VL – A pandemia tem sido uma perda de tempo, um adiamento da vida, uma calamidade que logo passará? Ou poderá ser uma oportunidade? Para refletir, para mudanças pessoais, sociais, estruturais?
Há um pensamento de Eberhard Jüngel a que procurei dar sempre a melhor atenção: «Quanto maiores são as adversidades, tanto maiores são as possibilidades». É claro que, na civilização da pressa, todos nos sentimos desaconchegados com as interrupções de tantas actividades a que fomos compelidos. Até o mais urgente teve de esperar. Precisamos de instaurar — na pessoa e nas instituições — uma cadência mais pausada que nos permita estar mais atentos e cultivar mais a escuta. Afinal, o silêncio também faz parte da relação e da comunicação.

VL – Como conjugar a fé, num Deus que é Omnipotente, que é Pai e é mais Mãe, com todo o flagelo que tem atravessado a sociedade e o nosso tempo?
Não é fácil, seguramente. O crente também é humano (desumano é que nunca deve ser), também sente, também sofre, também chora. Mas, como notaram já os antigos, a graça vem sempre em auxílio da natureza. E se a fé é importante para qualquer momento da vida, diria que é ainda mais necessária para os momentos de adversidade. A fé nem sempre nos traz aquilo que queremos, mas oferece-nos continuamente a presença d’Aquele de que mais precisamos: Deus em Cristo. Ele mantém-se nos que sofrem, nos abandonados, nos esquecidos. O que é feito a eles, é feito a Ele (cf. Mt 25, 40).

VL – A sociedade que estamos a construir será a melhor que podemos sonhar, pensar e construir efetivamente?
Nunca devemos deixar de sonhar a realidade nem de tentar realizar o sonho. A actualidade não é muito entusiasmante (as injustiças e a miséria não cessam de crescer), mas cabe-nos investir não na repetição do já feito, mas na construção do que ainda não foi empreendido. Temos de incluir o transcendente em todas as dimensões da vida. Por tal motivo, a prioridade será pormo-nos à escuta: de Deus e dos outros. Acredito num mundo sem guerras, sem ódios nem traições. Temos muito trabalho pela frente. Importante é não começar a desistir nem desistir de (re)começar.

VL – Folheando o livro, encontramos muitos neologismos, mas o conteúdo, ainda assim será o mesmo: Jesus Cristo e o Seu Evangelho de amor. Brevemente, caracterize-nos algumas dessas expressões: egocentrismo (egolatria) em contraposição com cristocentrismo…
Os despretensiosos neologismos são esforços de encontrar formas novas de dizer o perene. De facto, o importante nunca prescreve: Jesus Cristo e o Seu Evangelho de amor. Só que, muitas vezes, nós negligenciamos ou até esquecemos a pertinência do tesouro que transportamos. Num tempo de notícias más, esta é a melhor notícia: Deus, na maior demonstração de anti-egoísmo, envia o melhor que tem (o Seu próprio Filho) para dar a vida por nós. É por isso que, além das vacinas convencionais, precisamos de inocular, em doses incessantes, a «vacina C», a «vacina Cristo». Jesus Cristo emerge, pois, como o maior antídoto do egoísmo nas suas duas fórmulas mais insistentes: a «ego-latria» (o culto deslumbrado do «eu») e a «ego-cracia» (o poder desmedido do «eu»). Esta segunda modalidade configura mesmo uma «ditadura» que está em marcha até nas sociedades formalmente democráticas: a «ditadura do eu», de muitos «eus», que se sobrepõem e conflituam. É que já não bastava só o «eu» limitar-se a fazer o que quer (ignorando os outros) como ainda nos confrontamos com o «eu» a determinar que os outros façam o que ele quer. Apesar da prosperidade, nunca terá havido tantos indicadores de infelicidade, tangível no consumo desmesurado de antidepressivos. Insiste-se muito na «felicidade individual», esquecendo-se que só somos felizes fazendo felizes os outros. Para ser inteira, a felicidade nunca pode ser «solteira».

VL – Seremos uma geração perdida? Como é que a figura de Zaqueu pode ajudar-nos a reencontrar-nos?
O diagnóstico da «geração perdida» aparece em muitas leituras da actualidade, onde, como dizia Zigmunt Bauman, tudo parece «líquido», nada surgindo como sólido. Um crente, porém, não pode fixar-se em olhares tremendistas, desapossados de esperança. E, de facto, Zaqueu configura um paradigma que muito nos pode ajudar: o importante é procurar Jesus não apenas pelos meios de cada um (Zaqueu sobe a um sicómoro), mas acolhendo a proposta de Jesus: que o manda descer. Só chegamos a Jesus descendo. A via da humildade é a que nos leva a Jesus e, em Jesus, aos nossos irmãos!

VL – Nós e os outros! Novo ou velho normal? Citando Oscar Wilde, “O mais grave do egoísmo não é cada um viver como quer, mas pretender que os outros vivam como nós queremos”. Pode comentar?
Essa frase de Oscar Wilde, um génio incompreendido, sinaliza a face mais preocupante do egoísmo, a que já aludi: a «ego-cracia», o «eu» que se impõe aos outros sem contemplações, a qualquer preço e a todo o custo. O paradigma Jesus é totalmente diferente: é uma proposta de vida «des-centrada» de si e «re-centrada» em Deus e nas pessoas. Precisamos, mais do que de soluções imediatas, de uma alternativa consistente. E essa alternativa está em Jesus: a dádiva aos outros, a entrega pelos outros que leva a antepor os outros a nós mesmos. Não é fácil, mas é o que nos torna verdadeiramente felizes: se todos pensarmos em todos, ninguém fica de fora ou colocado à margem.

VL – “Mesmo em dias sombrios e em noites escuras, não nos falta para onde dirigir o olhar”. Assentará aqui a divisa da alegria? Uma civilização individualista é uma civilização triste. Porquê?
O individualismo conduz à tristeza porque não sai de si, só se vê a si. Torna-se, pois, repetitivo e entediante. É preciso perceber que nunca somos tão felizes como quando vemos alguém feliz. O individualismo fecha-nos. E alguém será feliz fechado?

VL – “Cristo não precisa que Lhe mostrem o mundo. O mundo é que precisa – cada vez mais – que lhe mostrem Cristo”. Alternativa: mundanizar o cristianismo (e a Igreja) ou cristianizar o mundo? Como fazê-lo?
Na verdade, Cristo conhece o mundo como mais ninguém. Segundo o Evangelho de São João (cf. Jo 1, 3), foi por Ele (Verbo encarnado) que tudo foi feito. O mundo, sim, precisa — e precisa cada vez mais — de que lhe mostrem Cristo em forma de vida, em forma de amor, em forma de testemunho total. Não é o mundo que muda Cristo; Cristo é que muda o mundo salvando-o. É natural que o novo corpo de Cristo (a Igreja) tenha as marcas do mundo em que se encontra. Mas não se pode mundanizar, diluindo-se. Pelo que a prioridade será cristianizar (Teilhard de Chardin diria «pancristianizar») o mundo. O mundo reencontrar-se-á quando se tornar uma «Cristosfera». Para isso e como já alertava São Paulo VI, carecemos mais de testemunhas do que de mestres. É a palavra da vida (mais do que a palavra dos lábios) que convence, cativa e mobiliza.

VL – Uma das expressões (título de um capítulo) aborda a dimensão exequial da vida cristã. Em que sentido se pode e deve viver esta dimensão?
Essa expressão pode ser equívoca, dada a sua conexão com as exéquias dos defuntos. Mas, na sua raiz, «exéquias» aponta para «seguir». Segundo os peritos, «exéquia» deriva de «ex»+«sequi», isto é, «seguir para fora». Reparando bem, isto vale não apenas para o último momento, já que estamos sempre a ser chamados a «seguir para fora». Estamos sempre a ser chamados a «seguir para fora» de nós, para fora do nosso «eu». Ninguém como Jesus faz tal apelo de forma tão insistente: «Segue-Me» (cf. Mt 8,22; 9,9; Mc 2,14; 10,21). Seguir Jesus liberta-nos da prisão que mais nos pode triturar: o nosso «eu».

VL – Conservadores e progressistas / vanguardistas. Esta realidade existe dentro da Igreja?
Como sabemos, os dualismos são sempre uma tendência e uma tentação. Para fugirmos à complexidade das situações, distinguimos com demasiada pressa e, nessa medida, corremos o risco de fracturar. Também na Igreja, é corrente a propensão para «etiquetar» pessoas e movimentos. A pluralidade é sempre uma riqueza desde que não degenere em antagonismos e rupturas. Aliás, Miguel de Unamuno era de opinião de que «nada nos une tanto como as nossas discordâncias». A unidade da Igreja, por vezes, é tensa, mas no fundo é intensa. Pois há um único que a todos nos une e irmana: Jesus Cristo. N’Ele todas as diferenças se conjugam sem conflituarem. Daí a imagem da «sinfonia»: muitos instrumentos fazem uma só harmonia. Não esqueçamos que Jesus rezou pela unidade da Igreja (cf. Jo 17, 21). A diferença é salutar, já a divisão é «contra-testemunhal».

VL – Outra das dimensões essenciais da Igreja e dos cristãos: a missão. Como vê este imperativo? E que começa, curiosamente, pela oração…
A Igreja é, por natureza, missionária. E como fazemos parte da Igreja a partir do Baptismo, todo o cristão terá de ser missionário. Onde está o cristão, aí tem de estar a missão. Esta é englobante, tendo o seu início na oração. O maior empreendimento missionário de sempre — o de São Paulo — começou pela oração. A oração não conflitua com a missão. Pelo contrário, alenta e alimenta a missão. Os grandes missionários são grandes orantes.

VL – Proposta cristovital: “Amar é fazer o que o Amado quer”. Aonde é que esta proposta nos poderá conduzir como cristãos e como Igreja?
Esta é a síntese deste pequeno livro. O cristão é chamado a «deixar de ser» para «passar a ser». Deixa de ser apenas ele para passar a ser Cristo nele e, por ele, nos outros. É a maior chave para vencer o egoísmo nas suas diversas modulações. Se procurarmos fazer o que Cristo quer (ainda que não corresponda à nossa vontade), estaremos a vencer o egoísmo e a contribuir para que o amor se difunda. A Igreja será testemunha de Cristo se respirar Cristo em cada momento, até ao limite. Daí que a escuta seja fundamental. Quando amamos o Senhor, o que conta é o que Ele quer. Ponhamos-nos, pois, em estado de escuta e de missão. Deixemo-nos conduzir por Ele e o mundo começará a ser o que Ele pretende: uma fraternidade!

 

in Voz de Lamego, ano 91/44, n.º 4626, 29 de setembro de 2021

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